Auditoria e Asseguração em Licitações e Contratos

Compete aos Tribunais de Contas o julgamento das contas de Prefeitos que atuem na qualidade de ordenadores de despesa

O Supremo Tribunal Federal (STF) julgou procedente, em sede de Agravo Regimental, o pedido de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 982, relativa ao Estado Paraná, formulado pela ATRICON (Associação dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil), para invalidar decisões judiciais ainda não transitadas em julgado que anulavam atos dos Tribunais de Contas.

Tais atos diziam respeito ao julgamento de contas de gestão de prefeitos, especialmente nos casos em que houve imputação de débito ou aplicação de sanções fora do âmbito eleitoral. A Corte reafirmou, contudo, a competência exclusiva das Câmaras Municipais para fins do art. 1º, inciso I, alínea “g”, da Lei Complementar nº 64/1990 (inelegibilidade decorrente de rejeição de contas públicas por irregularidade insanável), conforme entendimento já consolidado em decisões anteriores.

O inteiro teor do Acórdão foi publicado no Diário da Justiça Eletrônico (DJE), em 17/03/2025.

tese com repercussão geral

Foi fixada a seguinte tese de julgamento:

I – Prefeitos que ordenam despesas têm o dever de prestar contas, seja por atuarem como responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos da administração, seja na eventualidade de darem causa a perda, extravio ou outra irregularidade que resulte prejuízo ao erário;

II – Compete aos Tribunais de Contas, nos termos do art. 71, II, da Constituição Federal de 1988, o julgamento das contas de Prefeitos que atuem na qualidade de ordenadores de despesas;

III – A competência dos Tribunais de Contas, quando atestada a irregularidade de contas de gestão prestadas por Prefeitos ordenadores de despesa, se restringe à imputação de débito e à aplicação de sanções fora da esfera eleitoral, independentemente de ratificação pelas Câmaras Municipais, preservada a competência exclusiva destas para os fins do art. 1º, inciso I, alínea g, da Lei Complementar n. 64/1990.

ADPF 982 – Relator Ministro Flávio Dino
voto do relator

O Relator do Agravo Regimental, Ministro Flávio Dino, baseou sua decisão na análise de três teses fixadas pelo STF, os Temas de Repercussão Geral 157, 835 e 1287, todas diretamente relacionadas à matéria de fundo discutida na ação de controle concentrado (ADPF 982).

Tema 157 (10/08/2016): O parecer técnico elaborado pelo Tribunal de Contas tem natureza meramente opinativa, competindo exclusivamente à Câmara de Vereadores o julgamento das contas anuais do Chefe do Poder Executivo local, sendo incabível o julgamento ficto das contas por decurso do prazo.

No julgamento das contas anuais do prefeito, não há julgamento do próprio prefeito, mas deliberação sobre a exatidão da execução orçamentária do município.

A rejeição das contas tem o condão de gerar, como consequência, a caracteriazação da inelegibilidade do prefeito, nos termos do art. 1º, I, g, da LC 64/1990. Não se poderia admitir, dentro desse sistema, que o parecer opinativo do Tribunal de Contas tivese o condão de gerar tais consequências do Chefe de Poder local.

No caso de a Câmara Municipal aprovar as contas do prefeito, o que se afasta é apenas sua inelegibilidade. Os fatos apurados no processo político-administrativo poderão dar ensejo à sua responsabilidade civil, criminal ou administrativa.

RE 729744 – Relator Ministro Gilmar Mendes

Tema 835 (10/08/2016): Para os fins do art. 1º, inciso I, alínea “g”, da Lei Complementar 64, de 18 de maio de 1990, alterado pela Lei Complementar 135, de 4 de junho de 2010, a apreciação das contas de prefeitos, tanto as de governo quanto as de gestão, será exercida pelas Câmaras Municipais, com o auxílio dos Tribunais de Contas competentes, cujo parecer prévio somente deixará de prevalecer por decisão de 2/3 dos vereadores.

A controvérsia em questão se cingiu à definição, em conformidade com as disposições constitucionais, do órgão competente para rejeição das contas prestadas pelos prefeitos municipais para os fins de caracterização de inelegibilidade (art. 1º, inciso I, alínea “g”, da Lei Complementar n. 64/1990).

O STF limitou-se a vedar a utilização do parecer do Tribunal de Contas como fundamento suficiente para rejeição das contas anuais dos Chefes do Poder Executivo Municipal e do consectário reconhecimento de inelegibilidade, razão pela qual entendeu ser imprescindível para tal fim o julgamento das contas do Chefe do Executivo pelo Poder Legislativo.

RE 848826 – Relator Ministro Luís Roberto Barroso

Tema 1287 (19/12/2023): No âmbito da tomada de contas especial, é possível a condenação administrativa de Chefes dos Poderes Executivos municipais, estaduais e distrital pelos Tribunais de Contas, quando identificada a responsabilidade pessoal em face de irregularidades no cumprimento de convênios interfederativos de repasse de verbas, sem necessidade de posterior julgamento ou aprovação do ato pelo respectivo Poder Legislativo.

O caso não envolve a discussão de inelegibilidade, nem o julgamento das contas anuais do Poder Executivo municipal, mas envolve a possibilidade, ou não, de imputação administrativa de débito e multa a ex-prefeito, pelos Tribunais de Contas, em procedimento de tomada de contas especial, decorrente de irregularidade na execução de convênio firmado entre entes federativos.

ARE 1436197 – Relator Ministro Luiz Fux

Duas são as conclusões que devem ser extraídas da análise realizada, segundo o Ministro Flávio Dino:

  • I) os Temas de Repercussão Geral 157, 835 e 1287 tratam de aspectos diversos da competência constitucionalmente atribuída aos Tribunais de Contas e às Câmaras Municipais para o exercício do controle externo das contas apresentadas pelo Chefe do Poder Executivo municipal. Nesses casos, as atribuições das Cortes de Contas e do Poder Legislativo foram examinadas tanto sob o prisma da inelegibilidade quanto da tomada de contas especial, resultante de irrregularidades na execução de convênios interfederativos;
  • II) nenhum dos precedentes vinculantes mencionados aborda especificamente a possibilidade de as Cortes de Contas, fora do contexto de tomada de contas especial, imputarem débitos ou aplicarem multas a Chefes do Poder Executivo que se encarregam de ordenar despesas, ou seja, no julgamento de contas de gestão, ainda que preservando a competência do Poder Legislativo em relação à aplicação do art. 1º, I, g, da Lei Complementar n. 64/1990.

Segundo o ministro-relator, o texto constitucional expressa, de forma inequívoca, duas competências diversas dos Tribunais de Contas, quais sejam: i) a apreciação, mediante parecer prévio, das contas anuais prestadas pelo Chefe do Poder Executivo (art. 71, I, da CF/1988); e ii) o julgamento das contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos, bem como daqueles que derem causa a perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte prejuízo ao erário público (art. 71, II, da CF/1988).

Portanto, entendo que a atribuição dos Tribunais de Contas se altera em razão da natureza das contas em análise, não dos sujeitos que as prestam. Isso porque, de acordo com a norma extraída do texto constitucional, as Cortes de Contas detêm competência para exercer o julgamento técnico das contas de ordenadores de despesa, remanescendo a titularidade do julgamento político das contas de governo, prestada pelos Chefes do Poder Executivo, aos órgãos do Poder Legislativo.

Relator Ministro Flávio Dino

O Ministro Flávio Dino destacou que, em sua interpretação, a Constituição reconhece aos Tribunais e Conselhos de Contas não apenas o papel de órgãos auxiliares do Poder Legislativo, mas também a autonomia e a autoridade técnicas necessárias ao exercício efetivo do controle externo sobre a Administração Pública. Para fundamentar esse entendimento, citou o Tema de Repercussão Geral n. 47, no voto do relator, Ministro Edson Fachin.

outros trechos do voto

As decisões tomadas pelas Cortes de Contas devem ser dirigidas à preservação da eficácia, dentre outros, dos princípios norteadores da Administração Pública dispostos no caputdo art. 37 da Constituição Federal, quais sejam, legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.

Com efeito, a consequência prática do afastamento da competência dos Tribunais de Contas para imputar débitos ou multas, em casos de comprovada má gestão de recursos públicos será um inevitável esvaziamento do controle externo sobre os entes políticos cujos Chefes do Poder Executivo assumam pessoalmente a função de ordenar despesas.

Em última análise, negar, às Cortes de Contas, a competência para o julgamento de contas de gestão de Prefeitos municipais, produzirá inevitáveis e heterodoxas situações de imunidade da gestão patrimonial desses entes políticos ao julgamento técnico-jurídico exercido pelos Tribunais de Contas, cuja justificativa se consubstanciará em um ato discricionário de avocação da ordenação de despesas, buscando impedir a incidência do art. 71, II, da Constituição Federal. Esta, sem dúvida, não foi a intenção buscada pelo constituinte, ao estabelecer um sistema estruturado de controle da Administração Pública.

O princípio republicano reclama a existência de mecanismos efetivos de controle da probidade, da transparência e da prestação de contas, de maneira que a fiscalização dos atos do gestor público deve ser acompanhada de instrumentos hábeis a conferir-lhe máxima eficácia. E essa é justamente a função de julgamento técnico-jurídico conferido, pela Constituição Federal, às Cortes de Contas. Por essa razão, a gestão do ordenador de despesas, ainda que esse ocupe a função de Chefe do Poder Executivo, não deve escapar à análise técnica e julgamento dos Tribunais de Contas.

vocabulário técnico

Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) – é uma ação de controle de constitucionalidade, prevista no art. 102, § 1º, da Constituição Federal de 1988, com o objetivo de evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do poder público, apreciada pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

Contas de Gestão – referem-se à atuação do ordenador de despesa quanto à execução orçamentária, financeira e patrimonial dos recursos públicos. Podem ser julgadas diretamente pelos Tribunais de Contas (julgamento técnico).

Contas de Governo – prestadas anualmente pelo Chefe do Poder Executivo. Demonstram a atuação política e os resultados da gestão. Tribunais de Contas emitem parecer prévio. Pode ser desconsiderado por 2/3 dos membros do Poder Legislativo. Julgamento Político do Poder Legislativo com impactos em inelegibilidade do Chefe do Poder Executivo.

Ordenador de Despesa – é toda e qualquer autoridade de cujos atos resultarem emissão de empenho, autorização de pagamento, suprimento ou dispêndio de recursos públicos. Somente poderá ser exonerado de sua responsabilidade após julgadas regulares suas contas pelo Tribunal de Contas (§ 1º, art. 80 do Decret0-Lei 200/1967).


Fonte: elaboração própria a partir das informações processuais disponíveis no Site do STF – ADPF 982

Renato Santos Chaves


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